Um consenso entre os participantes do treeking que fizemos ao Acampamento Base do
Everest foi o excelente papel desempenhado por nosso guia. Tivemos o prazer de conviver 21 dias com um profissional de elevada competência técnica, mas – e principalmente – uma ótima pessoa. Ao final de nossa jornada, no Himalaya Lodge (Lukla), Manoel Morgado nos concedeu uma entrevista onde revelou alguns aspectos de sua vida e de seu trabalho.
Quem é Manoel Morgado?
Formou-se como médico, com especialização em pediatria em 1980 e em 1992 abriu a Morgado Expedições. Há 24 anos vive sem residência fixa. Trabalha durante seis meses por ano guiando grupos e nos outros seis meses realiza prospecções e seus projetos pessoais pelo mundo.Entre as montanhas que já escalou estão os pontos mais altos da América do Sul (Aconcagua - 6.962 m), da América do Norte (McKinley ou Denali - 6.196 m), da Europa (Elbrus - 5.642 m), da África (Kilimanjaro - 5.895 m), da Oceania (Kosciuszko - 2.228 m), da Antártida (Monte Vinson – 4.892 m). Em 2009 escalou o Cho Oyu, (8.201 m) a sexta mais alta montanha do mundo e em maio de 2010, o Everest tornando-se, com 53 anos, o oitavo brasileiro a atingir o cume (8.848 m). A história dessas duas últimas escaladas foi relatada no livro Sonhos Verticais. Em 2012 fez a tentativa de escalar o Manaslu (8163 m) sem oxigênio e sem a ajuda de sherpas e esteve bem próximo da avalanche que vitimou 12 pessoas.
Entrevista
(AM) Você já guiou o trekking ao Acampamento Base do Everest 52 vezes. O que o motiva a voltar ?(MM) Eu tenho duas grandes motivações para voltar para esta região: a primeira é porque eu amo este lugar, eu gosto das pessoas, eu me sinto bem e é muito gratificante profissionalmente como guia, atuar em um lugar que você conhece muito bem. A carga de informação que posso fornecer é maior que em outros lugares. Então, é uma motivação continuar voltando.
A segunda não tem muito a ver com o número de vezes que eu venho aqui ou vou a qualquer lugar: uma das grande motivações de guiar é você ajudar as pessoas - boa parte com pouca experiência ou inexperientes - e ver o progresso dessas pessoas, sentindo-se mais à vontade, entendendo como funciona o ritmo de um trekking, superando as suas dificuldades, atingindo seus objetivos e é uma coisa muito gostosa.
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| Manoel Morgado cumprimenta membros da equipe de carregadores em Namche Bazaar |
Hoje, todo mundo estava emocionado quando demos a gorjeta porque, de uma forma ou de outra, eles nos tocaram profundamente e isso acontece todas as vezes [Foi o dia de chegada à Lukla e encerramento do Trekking, com a despedida de grande parte da equipe que nos acompanhou]
(AM) Ser budista faz diferença ao guiar grupos? Antes de ser budista você guiava diferente?
(MM) (Pausa)....Hummm...Ser budista é uma coisa muito ampla...Budismo foi uma coisa que influenciou profundamente a minha vida.Eu cheguei aqui há 30 anos, sem nenhuma inclinação espiritual, zero. E aos pouquinhos, eu fui entrando em contato com o budismo, fui aprendendo mais, estudando, fazendo cursos, retiros e isso me modificou de uma forma muito grande.
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| Roda de orações, bandeirinhas e pedras com orações budistas |
(AM) Mas, em termos pessoais, você ficou diferente do que era? Por exemplo, se acontece alguma situação, você está agindo diferente de como agiria antes, mais paciente ou com mais serenidade?
(MM) Eu acho que sou uma pessoa mais serena hoje em dia, mais paciente, menos explosiva - que era uma coisa que eu era bastante. Eu não saberia te dizer se isso veio com a idade ou com o tempo, porque começamos a pensar como somos e o que é que faz bem pra gente e o que é que faz bem para os outros. Logicamente que o budismo também teve uma contribuição grande neste sentido. Guiar é saber lidar com pessoas e o budismo mais do que qualquer outra coisa, traz o autoconhecimento. Então, eu tenho certeza que isso me ajudou pessoalmente e profissionalmente.
(AM) Por que a opção de morar fora do Brasil?
(MM) Na verdade a opção de morar fora do Brasil não é bem a pergunta. A opção é de não morar. E isso, na realidade, é uma coisa que não foi opção. Foi acontecendo. Eu saí do Brasil em 1989. Aí tinha uma razão mesmo. Eu queria sair. Eu estava um pouquinho desgostoso com não me sentir cidadão. Não ter direitos de cidadão no país no país onde eu morava. Eu lembro de algumas situações, por exemplo, um erro do BNH: eu estava comprando um apartamento e um dia me comunicaram: "Você tem..não sei quanto...9 mil dólares para pagar porque a gente errou uma conta sua". Daí você vai falar com o advogado, que diz: "Olha..tudo bem, você pode brigar e daqui a 10 anos você vai receber .." e aconteceram duas ou três coisas nesse sentido que me fizeram pensar que não era o lugar onde eu queria morar.
"Viajar leve pelo mundo, pela vida, é uma coisa que acabou sendo uma filosofia minha"
Viajar leve pelo mundo, pela vida, é uma coisa que acabou sendo uma filosofia minha. Eu tenho muito pouca coisa, me sinto muito bem em ter muito pouca coisa. Mas isso não era uma coisa natural em mim. Eu tinha casa, tinha amigos, tinha família próxima e tudo, mas acabei perdendo essas necessidades e esse estilo de vida de ser nômade, acabou sendo muito, muito confortável para mim.
(AM) Mudando um pouco o foco das perguntas, quais critérios você usa para escolher um roteiro e oferecê-lo pela Morgado Expedições?
(MM) Todas as viagens que oferecemos são muito bem pesquisadas antes. Eu nunca coloco um roteiro que eu não tenha visitado e normalmente o tempo da pesquisa do roteiro é, pelo menos, o dobro do que a viagem vai acontecer.
É importante conhecer uma gama bem grande de atividades ou de lugares para daí enxugar, pegar o melhor do que eu conheci e daí oferecer para as pessoas. As coisas que tentamos oferecer - embora isso não aconteça em todos os roteiros - é essa conjunção entre a parte física e de superação: montanha, caminhada, desafio, junto com algum lugar com a parte cultural interessante. Eu tento também, na medida do possível, oferecer coisas diferentes do que todo mundo já oferece. Então, estamos buscando Mongólia, Marrocos, Japão - que é a próxima viagem que deve entrar no roteiro.
Esses seriam os critérios. Mas, mais do que tudo, o roteiro deve ser uma coisa pela qual eu me apaixone. Eu jamais guiaria para um lugar do qual eu não goste, por mais comercialmente viável ou interessante que fosse. Eu larguei a medicina porque não estava satisfeito com meu trabalho profissional. Desde aquela época eu decidi que só iria fazer coisas que eu realmente gostasse. Então, depois de vinte e tantos anos fazendo isso, se eu vou em algum lugar que eu gosto, que me toca, naturalmente eu tento colocar e dividir isso com outras pessoas.
(AM) Qual a importância de associar os aspectos culturais de uma região com as atividades do trekking? Qual a importância disso dentro da Morgado Expedições?
(MM) Sempre que possível, com exceção das viagens de escalada, onde o objetivo é um pouquinho mais focado em subir uma montanha, nas outras viagens sempre procuramos trazer aspectos culturais. Para mim isso é importante. Eu sempre busquei lugares onde o aspecto cultural fosse bacana, onde houvesse culturas diferentes, desde as minhas primeiras viagens à Bolívia e Peru. Sempre foi importante e eu acho que cada vez mais as pessoas estão optando em ter férias de onde elas saiam com um aprendizado, ao invés de simplesmente ir a uma praia e ficar descansando. Cada vez mais existe essa busca.
(AM) Então, agrega valor ao que você oferece?
(MM) Com certeza
(AM) Planos para futuras expedições comerciais?. O que você ainda não explorou e está pensando em explorar?
(MM) Está vindo aí essa viagem ao Japão e acho que vai ser muito legal. O roteiro que estamos pensando em fazer inclui duas partes: uma parte é uma antiga rota que ligava a capital do Japão, Edo - que é o nome antigo de Tóquio - até Kyoto, onde alguns vilarejos ainda se mantém preservados em termos de arquitetura e a segunda parte depois de Kyoto é um circuito por templos muito antigos. É um roteiro de peregrinação no Japão: paisagens muito bonitas, acomodação absolutamente tradicional, comida japonesa caseira, um monte de ofurôs e fontes de águas termais.
Um pouquinho mais para frente, nesse ano, estamos indo para o Afeganistão, em uma área que está começando a desenvolver alguma estrutura de turismo de montanha, turismo de trekking. Uma parte muito pobre do Afeganistão, onde o turismo é, basicamente, a única saída. E essa região é tão pobre que nem os talibans se interessaram muito por ela. Então, aparentemente é um lugar bastante seguro. Vamos ver se dessa visita ao Afeganistão também pode sair um roteiro. Irã está nos planos, com certeza. Também o tour de Mont Blanc, um circuito de trekking ao redor do Mont Blanc, saindo da França, indo para a Itália, passando pela Suíça.
Eu sempre gosto de colocar coisas novas no cardápio que atinjam grupos diferentes de pessoas interessadas. Então, no Japão deve ser uma viagem razoavelmente light em termos de caminhada. Por outro lado, estamos colocando pro meio do ano que vem o Lênin, que é uma montanha com 7200m no Quirguistão, na Ásia Central. De novo, uma parte cultural interessante em um país completamente desconhecido no Brasil, com uma montanha mais alta que o Aconcágua.
(AM) Como você gostaria de ser lembrado? Quem foi esse Manoel Morgado?
(MM) Epitáfio.....(pausa) ....Acho que como alguém que procurou ser feliz ...procurou trazer felicidade para as outras pessoas de alguma forma, que fez um trabalho que, de alguma forma, afetou as pessoas e que não se acomodou muito em situações que não traziam a felicidade que ele estava buscando
(AM) O que faz você escolher onde trabalhar um projeto social?
(MM) Bom, aí tem um aspecto prático e tem um aspecto emocional. O aspecto emocional é que, de todos os lugares deste planeta, o lugar que mais amo é o Nepal. O povo que mais amo é o povo nepalês, com quem eu me identifico mais, pelo qual eu tenho mais carinho e é também, sem dúvida, o país que me deu mais. Então, é um pouquinho, nadinha, de retribuição.
A parte prática é que eu confio nessas pessoas. Se você desenvolver um projeto social, uma ONG ou qualquer coisa assim, a chance do dinheiro que você levanta ir parar no bolso de alguém é grande, infelizmente ...e eu não estou dizendo que povos de outros países são diferentes, são desonestos. Mas aqui no Nepal, na hora que entrego o dinheiro pro Dorje [o líder dos sherpas de nossa equipe] eu sei que o dinheiro vai ser usado para o fim a que se destina e ele não vai ficar com 01 centavo. O Sunir me ajuda nisso, que é outro grande amigo aqui, no qual confio absurdamente e isso é uma coisa bacana.
Então, eu tenho os meios, eu tenho as pessoas, eu tenho a confiança e eu tenho amor. E de qualquer jeito, a abrangência de nossos projetos é muito pequenina, então eu optei não só em investir essa energia aqui no Nepal, mas investir energia no vilarejo. Eles vivem em nove vilarejos, todos próximos uns dos outros. Isso é outra coisa que acho que a gente fez direito e é um erro muito comum em projetos de ajuda, que é imaginar o que você acha que é legal para eles e ir de cima para baixo. Antes de começar os projetos sociais, eu fiquei quatro dias no vilarejo do Dorje, a gente conversou com as pessoas importantes do vilarejo e eles me contaram. Eu fui com uma idéia e eles me disseram: "Não, isso a gente já tem ou não é prioridade. Prioridade aqui é água potável". Então, começamos a agir nesse sentido
(AM) Você pensa em se aposentar?
(MM) Eu não me vejo parando de trabalhar de forma nenhuma. É uma coisa que eu tenho muito prazer, muito, muito prazer. Eu tenho uma forma física muito boa. Para minha idade, eu sou muito forte e gostaria de pensar que eu tenho muitos anos aí pela frente.
Tem outros lados que eu quero desenvolver. Estamos começando a desenvolver dois projetos que são muito bacanas, dois muito parecidos. Junto com o Vitor [Um dos participantes do trekking] traremos agora em dezembro um grupo de seis cegos para fazer esporte de aventura aqui no Nepal, que é a reedição de um projeto que eu fiz em 1994 e se chama "Desafio de Atitude". A função disso é mostrar para a sociedade e mostrar para os portadores de deficiência física que é possível fazer muito mais coisas do que eles imaginam. O Vitor estava comentando que 90% dos cegos estão em casa, trancafiados, porque a família deixa, porque eles se sentem incapazes de sair ou porque não têm os meios. Então, trazer seis cegos para fazer seis dias de rafting classe 5, para fazer bunging jump, para fazer vôo de ultra leve, enfim um monte de coisas que boa parte das pessoas não tem coragem de fazer. E mostrar o que as pessoas conseguem fazer, porque isso dá uma mídia muito grande.
(AM) O desafio é esse: a cada dia ter um projeto diferente, um desafio novo...
(MM) E daí são três ramos atualmente: os desafios pessoais - eu quero escalar mais 2 ou 3 montanhas de 8000m e isso me dá um foco de treinamento, um foco de desafios pessoais. Segundo: esses projetos sociais, que são muito bacanas porque é um desafio também achar alguma coisa viável, ir atrás da grana e tal e o terceiro: esse projeto com os deficientes físicos.
O Aventura Mango agradece a Manoel Morgado pela oportunidade de compartilhar sua visão e suas idéias nesta entrevista. Namastê!
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